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A mãe ideal




Filme: A filha perdida (Netflix)

Série: Cenas de um casamento (HBO)

Livro: Suíte Tóquio (Giovana Madalosso)


Um combo indigesto para explodir o ideal de mulher mãe.


Muito tem se falado sobre o longa A Filha Perdida, baseado no romance homônimo de Elena Ferrante. Não é para menos. Trata-se de um filme incômodo, porém de uma sensibilidade ímpar, que mexe profundamente com a mãe (ou a filha) que existe em cada uma de nós.


Assisti a ele pouco depois de concluir a série Cenas de um Casamento, baseada no filme também homônimo de Bergman, igualmente incômodo e sensível. O segundo episódio é tão impactante que demorei algumas semanas para conseguir seguir em frente. O enredo é o mesmo do sucesso da Netflix: uma mãe que decide se afastar da filha pequena, deixando-a aos cuidados do pai para viver um romance e se dedicar ao trabalho.


Inadmissível. Incompreensível. Impossível. Irresponsável. Egoísta. Narcisista. Essas foram as críticas que li de 90% das mães à personagem Leda, do filme, mas que também poderiam ter sido dirigidas à Mira, protagonista da série. Para completar, inicio o ano com o maravilhoso romance da Giovana Medalosso, sem saber que tais comentários se adequam perfeitamente à Fernanda, uma mãe que também abandona a filha, ainda que sem sair de casa.


O que fazem de Leda, Mira e Fernanda personagens tão odiadas e repugnantes? Elas não conseguem bancar a maternidade. Impensável conceber que uma mãe deseje abandonar um filho. Mais impensável ainda aceitar que ela faça isso de fato.


Para começar a pensar sobre isso, não dá para não mencionar um ponto importante dessa história: se fossem os pais abandonando seus filhos, ninguém se surpreenderia, porque isso não é uma ficção impensável, é apenas uma cena cotidiana normal. A Filha Perdida, Cenas de um Casamento e Suíte Tóquio só são tão incômodos porque falam da mulher. E a mulher nasce para ser mãe, certo?


Ah, mas a gente pode escolher!


Será. Não acredito em liberdade de escolha quando, ao nascer, uma boneca é colocada em nossos braços. Quando, aos 30 anos, o médico diz: "E os filhos? Se quiser, tem que ser agora." Quando, já na festa do casamento, a tia pergunta: "E aí, quando vem o bebê?". Não existe liberdade de escolha quando vivemos em um país onde não existe sequer educação.


Mulheres não nascem mães. Mas nossa sociedade as transforma em mães assim que nascem. E a partir do momento em que uma mulher tem um filho, espera-se que ela já esteja pronta, afinal, é dela a responsabilidade por essa escolha. E é mesmo. Dela e do pai. Os filhos não têm nada a ver com a complexidade social desse tema. Eles não merecem e não devem ser abandonados. Mas é justamente aí que está a importância de olhar para essas obras com um olhar bem mais profundo do que um mero julgamento moral inicial: precisamos que as mulheres de fato escolham ter filhos, sabendo minimamente o que isso significa, inclusive considerando a contexto cultural que determina que é delas a responsabilidade pelos rebentos. Porque a maternidade não é nada fácil e pode sim, em diversos momentos, ser sufocante. Talvez se deixarmos de colocar tanta expectativa sobre ela, poderemos ver menos Ledas, Miras e Fernandas surgindo por aí, ainda que dentro de suas próprias cabeças, gerando mulheres aflitas, angustiadas e infelizes. Talvez se deixarmos de perceber o cuidado como responsabilidade exclusiva da mulher, também. Uma criança, no fim das contas, é responsabilidade de toda a sociedade.


Não estou defendendo a atitude dessas mães desnaturadas. Ooops: desnaturado: aquele que é destituído dos sentimentos considerados como naturais do homem. Natural: aquilo que é regido pelas leis da natureza. Sim, as fêmeas tendem a proteger seus filhotes com unhas e dentes até que eles se tornem independentes. Mas nós não somos fêmeas. Somos humanas. E humanas são bem mais complexas do que isso. A maternidade não é biológica apenas. Ela é uma construção social e deveria, portanto, ser problema de toda a sociedade. O que estou defendendo é que precisamos olhar com cuidado para esse ideal de mulher mãe que criamos. Mulheres podem se realizar de outras formas, podem ter outras aspirações e podem, sim, não se identificar com a mãe ideal que, vamos combinar, nunca sequer conheci.

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      Flávia Vilhena
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Sou a Flávia. Mãe do Caetano e do Augusto. Viajante, ex-blogueira (de viagem), advogada e agora escritora...

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