top of page

Buraco


O tema ainda é isolamento social. Mas não é desse buraco que estou falando. É daquele que se joga com cartas e que, para mim, é um mergulho em memórias ainda mais longínquas que as do velho normal. Memórias da minha infância. Memórias da minha avó.


No meu caso, ficar trancafiada em casa trouxe uma mudança que me levou de volta para o passado: jogar buraco.


Buraco pode parecer algo banal para você que me lê. Mas para mim não é. Quem me ensinou a jogar foi a minha avó e, veja bem, buraco para ela era coisa séria. Seríssima. Fui ensinada com rigor.


Ainda muito criança, jogava em completo silêncio, totalmente compenetrada. A toalha verde aveludada cobria a mesa posicionada bem no centro da casa de praia de tijolinhos marrons. E essa lembrança leva minha memória para ainda mais longe.


Eu poderia resumir boa parte da minha infância àquela casa. À rede na varanda. Ao chuveiro gelado dos fundos levando a areia que insistia em não descolar dos pés. Aos pés sempre descalços. Às pernas picadas de mosquito. Ao corpo vermelho de tanto sol. À bagunça dos primos, à casa sempre cheia, à cozinha viva e à cabeça leve de quem tem como única preocupação brincar: na terra do quintal, na beira do mar.


Menos durante a jogatina da noite. O buraco era coisa séria, lembra? As cartas eram dadas na ordem exata que deveriam ser distribuídas. As regras eram rigorosas. A mesa era como um santuário.


Aprendi muito bem com a minha avó. Penso que ela sentiria orgulho da jogadora que me tornei, embora tenha certeza que desaprovaria o jogo rolando madrugada adentro à base de muito vinho, conversa fiada, risadas e provocações. Talvez ela preferisse mesmo jogar com aquela criança obediente, afinal, o jogo era coisa séria.


Mas eu fico só com o que me interessa.


Descarto o que não me serve mais.


Jogo de forma leve, mas nunca me esqueço dela naquela mesa. Esperta, perspicaz. Exímia jogadora. Me lembro do prazer de aprender com ela.


O Alzheimer levou a minha avó. Mas não levou o que dela vive em mim. Ela não venceu a doença, mas, nesse momento, eu sim. Porque é a imagem da jogadora habilidosa que eu escolho guardar.


O resto, escolho descartar.


Comments


      Flávia Vilhena
foto 2.jpg

Sou a Flávia. Mãe do Caetano e do Augusto. Viajante, ex-blogueira (de viagem), advogada e agora escritora...

Textos em Destaque
Textos Recentes
Procure por tema

E aí, curtiu? Me conta o que você achou.

  • Instagram
  • Facebook
  • LinkedIn ícone social
  • Twitter
  • Spotify ícone social
Siga
  • Instagram
  • Facebook
  • LinkedIn ícone social
  • Twitter
  • Spotify ícone social
bottom of page