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Carta para mim mesma há um ano atrás (e para um futuro que ainda tarda em chegar)


Eu tenho certeza que você está bastante abalada com tudo o que está acontecendo. Eu sei exatamente como é esse turbilhão. Medo, incerteza, angústia, desespero.


Eu sei que você acorda todos os dias com a sensação de que está vivendo em um filme. E que logo ao despertar essa sensação é muito real. Eu também sei o quanto é desesperador esfregar os olhos e compreender que nada mudou desde que você se deitou.


É irresistível atualizar o site de notícias a cada hora, não é mesmo? Está difícil concentrar para trabalhar. O Twitter está fervilhando. Uma catarse mundial às avessas.


Sim, eu sei.


Eu entendo como é angustiante não saber o quanto isso vai durar, mas, veja bem, eu te garanto: você vai aprender a lidar com isso. Aliás, você vai aprender muitas coisas. Será difícil, muito difícil. Às vezes poderá parecer insuportável. Mas você irá suportar. Irá se adaptar.


Aos poucos, por incrível que pareça, a engrenagem voltará a rodar dentro de uma dinâmica nova. Para o momento, é só o que importa. Girar.


Eu queria que você não tivesse se pressionado tanto. Eu gostaria que você tivesse sido sempre gentil diante desse furacão que remexe a barriga, a mente e o coração. Mas eu também entendo que nem sempre isso tenha sido possível. E está tudo bem assim também. Está tudo bem não saber por onde seguir, se perder, temer. Mas eu tenho uma ótima notícia: você tem tudo o que você precisa para crescer. E você vai crescer, pode acreditar.


Sim, os desafios serão imensos. Enclausuramento, hiperconvivência, gritos de criança, choro de bebê. Mas serão também desmedidos os abraços, os sorrisos inocentes, as gargalhadas. E será gigante vê-los crescer.


A saudade é, sem dúvidas, onde mais irá doer. Saudades da família, dos amigos, da liberdade, dos planos, do ir e vir. Saudades de tomar cerveja com os colegas no happy hour. Saudades de sair para almoçar. Saudades de planejar a próxima viagem. E sim, uma saudade absurda de viajar.


A natureza faltará, e isso te fará perceber o quanto ela é importante para você. Mas o sol estará quase sempre lá, na janela, sua nova porta para o mundo. Quando não estiver, a chuva chegará, e virá com intenções de lavar a alma, levando embora o choro contido que muitas vezes não sairá da garganta.


Tem uma parte que será difícil de digerir. Que se eu te contar, você não vai acreditar. Você será surpreendida quando perceber que não basta uma pandemia, que tudo ainda pode piorar. O cenário político se tornará estarrecedor. Serão muitos choques diante da TV. Ministro e presidente lavando roupa suja em horário nobre poderá soar como o ápice da incredulidade. Mas preciso ser honesta: será apenas o começo. Outras coisas inimagináveis seguirão vindo do cerrado, dia após dia. Me faltam palavras para explicar. Faltarão também ministros, faltará liderança, faltará verdade, faltará tudo. Só absurdos sobrarão. Para todos os lados. Absurdos e fake news. E com relação a isso, sinto informar, você nunca irá se acostumar.


Mas não pense que tenho apenas notícias ruins. Tem também uma novidade incrível e surpreende: a vacina irá chegar! Em tempo recorde! A ciência mostrará o seu valor. Mas, infelizmente, ainda assim as coisas irão demorar.


Falando em demora, o tempo tomará outra proporção, mas mesmo assim seguirá escasso. Haverá um excesso de informações, de cursos, de lives e de encontros on line. Mas você não precisa se preocupar tanto com isso. Haverá tempo suficiente para escolher o que for preciso. Pode deixar de lado a ansiedade. Quando as lives acabarem, e elas irão terminar, estará tudo lá, no YouTube, e você terá muitos sábados à noite para desfrutar. 52 sábados, para ser exata.


Fez as contas, né?! Sim, essa é a parte chata. Estou falando do futuro. E um ano já se passou. Lembra aquela falta de perspectiva? Ele ainda permanece. Seguimos sem saber quando tudo irá acabar. E tenho uma notícia ainda pior para te dar. Aqui onde estou, nesse 1 ano que já se passou, nada melhorou. Pelo contrário. As coisas estão piores do que nunca. Mas você está bem melhor, e, acredite mais uma vez: isso é muito!


Hoje, inevitavelmente, estamos deprimidas. É difícil lidar com o fato de que, um ano depois, ao contrário de qualquer expectativa que você tivesse aí atrás, não apenas não tenhamos saído dessa, como estejamos num momento ainda pior, batendo ingratos recordes diários de doença, mortes e ignorância. Pelo menos seguimos impactadas com tudo isso. Às vezes ainda tenho medo de que a gente se acostume. Que a gente perca a capacidade de se indignar.


Mas vamos tentar falar de coisa boa. Afinal, tivemos um ano inteiro para viver. E ao menos tivemos uma boa oportunidade para aprender.


Você aprendeu sobre o que é o mais importante na vida. Passou a valorizar ainda mais sua família e seus amigos. Aprendeu o poder da gratidão e, diante dele, percebeu com clareza o tamanho dos seus privilégios. Passou a valorizar ainda mais a vida com presença, essa que se vive diariamente, sem quaisquer planos que envolvam o amanhã. Finalmente você aprendeu a meditar. Foram 4 anos achando que não era para você. Normalmente quando é assim, é que é pra gente mesmo. Você voltou a escrever e isso te faz um bem danado. Você não perdeu nenhum grande amor e, olha, nada pode ser mais valioso que isso. Você passou a se conhecer melhor e a cuidar mais de si. Passou a se relacionar melhor também com a Internet e aceitou que tudo bem não transformar as suas relações reais em zoons e conferências virtuais. Foi, enfim, um ano de muito crescimento e espero que continuemos seguindo assim: melhores.


Termino nossa conversa agradecendo por você ter se cuidado. Por ter conseguido manter nossa saúde e dos que nos rodeiam. Tivemos sorte. E precisamos seguir persistentes.


Daqui para frente, me uno a você, na construção desse nosso eu que segue caminhando. Desejo que tenhamos força para seguir lutando com integridade. Com a cautela que a situação requer. Desejo que tenhamos perseverança, esperança e ainda mais sorte. Desejo bom senso e saúde. Para a gente e para os próximos. Desejo para todo o mundo a chegada de tempos melhores. Porque a mesma impermanência que leva vidas, um dia levará também todo esse caos, nos devolvendo os abraços apertados, as celebrações e aquilo que hoje sabemos ser o que existe de mais valioso: a liberdade de estar ao lado de quem a gente ama.


Até lá, nos cuidemos e esperemos. Pois é tudo o que podemos fazer para ter de volta a vida que tanto presávamos. E para tê-la de volta, só há uma coisa pelo que lutar: permanecermos vivas, por esse futuro que virá.



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      Flávia Vilhena
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Sou a Flávia. Mãe do Caetano e do Augusto. Viajante, ex-blogueira (de viagem), advogada e agora escritora...

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